Te devo uma breja – Um desencontro marcado

A primeira é por minha conta (e nunca foi)
Tem gente que coleciona tampinhas de garrafa e rótulos de latas. E eu promessas de encontros que nunca aconteceram, ou demoraram demais pra acontecer.
Não por má intenção, juro. É mais uma conjunção caótica de trabalho e uma sucessão de eventos que na maioria das vezes não tenho controle nem consigo prever. Aqueles que não respeitam o relógio, compromissos que surgem do nada, e uma habilidade absurda de dizer “bora marcar sim” com sinceridade absoluta… que dura até o momento em que a vida me arrasta pra outro canto.
Não sei dizer quantas vezes prometi uma cerveja e fui eu mesmo que desmarquei… quase sempre a tempo de uma frustração gigante, quase…
“Hoje não vai dar, aconteceu um problema aqui em cima da hora… desculpa… vamos marcar de novo. Semana que vem?”
Semana que vem nunca chegou. E, se chegou, eu tava em outro bar, sozinho, tentando cumprir aquela promessa com o universo.
Segundas, promessas e pequenos rituais
Teve uma época em que segunda-feira era sagrada. Não por alguma regra de produtividade ou rotina alternativa, mas começou nos tempos "gloriosos" do Orkut, com uma comunidade, a "eu bebo de segunda”. Era compromisso com o sagrado do descompromisso. Depois, temos depois de trabalhar na Kreanto, eu, o Keita e o Valck subíamos pro Puppy da Paulista pra desestressar, dar risada e tomar várias.
Com o tempo, os encontros foram se perdendo, os horários desencontrando, a vida entrando com os dois pés na porta. Mas o ritual ficou. Por aqui, e eu segui brindando às segundas. Às vezes com companhia. Muitas vezes sozinho. Outras, só com a vaga esperança de que alguém ainda apareceria. E mesmo quando não aparecia, eu aparecia por mim.
Ali no Puppy, até os garçons já sabiam. O Toninho e o Araújo — dois irmãos que mais pareciam cronistas disfarçados de atendentes — recebiam a gente aquele olhar de “o de sempre?”, um cumprimento, um abraço, e já traziam a cerveja, mas já sabendo que o de sempre era mais do que isso: era a prática, o refúgio, a repetição. Eles sacavam a vibe do dia só de olhar o jeito que eu largava a mochila e muitas vezes ficamos com eles no papo e cerveja, lá dentro, com as portas fechadas, até 2, 3 da manhã… ritual né.
A Marcha dos Pinguins Marcelos
Muitas dessas segundas começavam lá embaixo, no Morumbi. Eu subia a pé — quase quinze quilômetros de asfalto, fone de ouvido e cerveja comprada em boteco pelo caminho. Um pouco exercício, um pouco loucura, um pouco paz sem platéia. Seguindo ali por algumas horas, (mais) uma conversa comigo mesmo…
No ouvido, as músicas de sempre. Eu adoro um looping, um riff sujo, um baixo pulsante, uma bateria nervosa e precisa que empurrava o passo e organizava o pensamento. Grunge melódico, hard rock moderno, indie sombrio e dançante, balada alternativa com cara de hit triste da rádio* Eldorado — tinha de tudo. Pearl Jam e Audioslave, Queens of the Stone Age e Green Day, Kendrick Lamar e Massive Attack, Depeche Mode e Midnight Oil, The XX e Bob Marley. Cada faixa carregava um tipo de energia diferente — e elas nunca me afetaram. Ouço clássica e não relaxo, ouço rock e não acelero. A música só me move, mas quem dita o ritmo não é ela.
Rádio é tipo um Spotify com personalidade própria: você liga, não escolhe nada, e ainda ganha de brinde um locutor animado que comenta o tempo, lê carta de ouvinte sofrendo por amor e mete um jingle no meio do refrão. Às vezes toca a sua música preferida, às vezes toca Fagner às 7h da manhã — e tudo bem, porque no fundo, rádio é esse rolê coletivo onde a trilha sonora da sua vida depende do humor de alguém que você nem conhece.
Se eu preciso acelerar o pensamento, sem problemas. Se preciso deixar pra trás, tudo bem também. Algumas músicas faziam a cidade parecer um videoclipe; outras só acompanhavam sem julgar. O som não era trilha de fundo: era engrenagem e combustível. Entre uma e outra, a cabeça ia longe: passava por ideias de trabalho, amigos que andavam sumidos, planos adiados, lembranças que vinham com gosto de cerveja. Às vezes eu resolvia coisa séria andando, conversando com os marcelos*. Outras só deixava as ideias decantarem. Era meu jeito de afinar por dentro enquanto o mundo lá fora seguia desafinado.
Esse papo com os Marcelos acontece direto. Tô andando na rua, falando sozinho, mas na verdade tô no meio de uma conversa com versões diferentes de mim mesmo. Todos têm opinião, todos com convicção total de estarem corretos — e em partes, estão. Cada um com uma opinião forte, embasada e com plena certeza de é o guardião da verdade — afinal são marcelos né. Tem o técnico, que pensa em planilhas mesmo quando a conversa é sobre sentimento. Tem o empático, que quer acolher e ajudar o mundo inteiro. Tem o provocador, que adora questionar tudo só pra ver até onde vai. Tem o visionário, cheio de planos que envolvem drones, música e microfones. E tem o que tá lá pela cerveja, que não fala muito, mas topa a maioria das ideias. Eu escuto, claro. Com respeito. Mas no fim a decisão é do Marcelo aqui. Nem sempre com razão, mas sempre com firmeza — porque democracia interna demais atrasa a caminhada.
Checkpoints emocionais
A distorção das guitarras, os delays, os refrões cheios de cicatriz — tudo ajudava a limpar o excesso. A cada trecho, eu voltava um pouco mais inteiro. Parava num boteco, pegava mais uma long neck — geralmente Heineken — e continuava. O caminho tinha bares estratégicos, quase checkpoints emocionais comportamentais. Era como se a cidade soubesse que aquele era meu modo de ir me afinando com a semana.
Chegava na Teodoro Sampaio já com o corpo solto e a cabeça em modo crônica. Aí vinha a parada final: Toca do Coelho. Uma artesanal na primeira mesa, do lado da geladeira, a mochila escorada no pé da cadeira, música tocando no fone — e eu ali, inteiro. Sem ninguém, mas com tudo.
Não era solidão no sentido triste da palavra, era mais estar sozinho de gente que eu conhecia. Era uma companhia silenciosa. Um jeito de cumprir, mesmo sem ninguém, as promessas feitas de boa fé e canceladas de última hora. Era um “eu fui”, ainda que ninguém mais tivesse ido.

Um desencontro por bar
Tem o dia do EAP, que combinei com o Meken, e fui pra lá… mas não era EAP, era Trilha… Errei o lugar, mas acertei. Pedi uma IPA e deixei a outra esperando.
E também aquelas outras, que eu me afogo em compromissos, eventos, e outras coisas e tudo vai atrasando, e o encontro que era pra ser as 19h, vai pras 20h, 21h, 22h… e nada termina… que acontece é que continuo bebendo, e as vezes(algumas) chegava ja baleado… mas eles são bons, não reclamam, não acham ruim, pelo menos não na minha frente.
E a clássica, aquele show do nosso amigo, e breja pra comemorar depois… Nesse eu cheguei! pra cerveja, mas cheguei… perdi o show… esse monte de reticências é o reflexo do meu pensamento sobre isso. Sempre um desencontro, mas só um por bar.
As vezes nós remarcamos, mas aí ninguém aparece porque a verdade é que ninguem gosta de segundas chances.
Encontros invertidos
Às vezes, é o contrário. Um churrasco em campinas, aniversário em Minas, um happy hour que me chamaram às 18h e às 18h30 eu já tava lá — sem nem saber direito como ia ser, quem ia estar.
Nessas horas eu apareço. Meio na surpresa, como figurante que vira protagonista de última hora. Chego, deixo todos em choque, e dou risada. Raramente consigo, mas tento ficar mais do que devia.
Mas quando sou eu que marco, aí parece que o mundo gira mais rápido.
Desculpas, sempre sinceras
“Eu juro que ia.”
“Foi mal, deu tudo errado aqui…”
“Não teve mesmo como, o evento atrasou.”
“Fico te devendo uma…”
Essa última é a pior né. Cerveja não é sobre o líquido — é sobre o intervalo entre um gole e outro. Aquele papo atravessado, a piada ruim que ninguém reclama, e até um silêncio confortável de quem não precisa impressionar. Então ficar devendo uma, é péssimo, ninguém vai pagar essa dívida mesmo… E esse tempo se perdeu, porque nem é o caso de beber, é de ter um tempo útil mesmo, com quem você gosta, com quem faz o tempo voar quando estão se divertindo.
Mesa pra dois, ocupada por um
Tem sempre uma mesa, banco ou cadeira específica nos lugares que eu bebo, que parece que me conhecem. Sabem o peso da minha mochila, reconhecem o ritual do celular virado pra baixo e da cerveja pedida sem cardápio.
Já sentei nela esperando amigo que se enrolou com o date. Amigo que esqueceu. Amiga que confundiu o dia.
O garçom sorri quando chego e diz “E hoje, vai de que?”. Eu balanço a cabeça, dou um sorriso e penso comigo mesmo que quero a de sempre, a IPA da casa, a minha IPA. Mas é preciso mudar as vezes… "Hoje quero outra. Uma nova."
Quem sabe mudando da IPA pra uma Sour nova a gente não engana a saudade…
E quando dá certo?
Quando dá certo, é mágico. É encontro espontâneo na Augusta, é segunda com os chefs no Bar do Luiz Nozoie com sorriso de quem duvidava. É copo brindado com força, papo que vira madrugada no Vivos e risada que faz o bar inteiro parecer cúmplice.
Aí a promessa valeu. A cerveja foi paga, a presença celebrada.
Mas mesmo quando não dá certo, tem beleza. Tem poesia no desencontro, tem charme no “quase rolou”. E tem crônica — sempre tem.

Brinde final
Te devia uma breja. Ainda devo. E talvez continue devendo, porque minha agenda é um jogo de Tetris com peças desonestas.
Mas juro que um dia vai. Um dia a gente senta, brinda e ri de todas essas vezes em que a vida me puxou pro lado oposto.
Enquanto isso, sigo colecionando mesas ocupadas por mim e promessas abertas como long necks que ninguém terminou.
E se um dia eu te encontrar num bar qualquer, não estranha se eu disser:
“A primeira é por minha conta… e agora é de verdade.”
Já leu o texto anterior de harmonizando relações?
Harmonizando relações
E com esse subtítulo já da pra ganhar nas costas mais uns 30 anos… Mas começamos bem: cerveja artesanal e relações humanas. Harmonizar cervejas você até já conhece, harmonização facial também, agora, harmonizar pessoas… aí o caldo engrossa, tipo aquela sour com lactose que você adora odiar. Escolher a IPA perfeita pra agradar todo mundo na mesa? Esquece…